quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Das máquinas de consolo

Por Fabiane M. Borges
"Ela precisava de carinho, mas ele continuava com seu auto-centramento habitual, falando das suas misérias, das injustiças da vida, das esperanças remotas mas ainda existentes — que lhe aqueciam nos dias mais frios. E aquele dia era um dos mais frios de São Paulo. Ela se retorcia toda, se enroscava pela mesa, pelas patas da mesa, colocava a bunda mais próxima ainda da ponta da cadeira, para poder fazer carinho naquele cara. Ela queria que ele fizesse aquele gesto, porque ela estava carente, desolada, queria que ele se retorcesse e passasse delicadamente a mão no meio dos seus olhos, entre suas sobrancelhas, que insistisse nesse pequeno gesto até que aquela coisa ruim dentro dela se dissipasse, mas isso não seria possível sem um pedido explícito, que poderia vir talvez com algum tom de reclamação, seguido de um mal estar, que originaria uma briga e causaria uma sensação de frustração completa e cansaço. Então ela o acariciava sem pedir nada em troca.
Eram os gestos de amor programados nela desde criancinha. Ela foi educada para acariciar seu homem, abraçá-lo, lambê-lo, lhe fazer cafuné, passar a mão na sua testa, nos seus lábios, nas suas armaduras. Ela sabe o poder que tem quando lhe esfrega as têmporas e consola sua dor. Ela fica convocando com a mão aquele lugar onde ele se entrega, reconhece coisas que não conseguiria reconhecer em um ambiente mais hostil, mais gelado. Esse lugar poderia ser o restaurante, onde todo mundo senta e come, mas as mãos milagrosas das cuidadeiras são capazes de transformar qualquer lugar em outro lugar mais afável.
A cena clássica da programação de gênero. A mulher consoladora, ouvinte, companheira, a que dá carinho, a que se dobra pra se encaixar na posição do macho, da que destrambelha o caminhar, o sentar na cadeira, modifica suas posturas corporais para encontrar a face, o peito, o pé do seu macho, que além de ter nascido para ser amado, precisa mais que tudo, de consolo ininterrupto, e não foi educado pelas mídias, pelo cinema, pela literatura, pela História, pela família a ser recíproco nisso. Ela dadeira, dando sempre até a morte. A cuidadeira, carinhosa, trepadeira, a máquina de consolo.
A programação do macho é outra. Estão acostumados com uma cultura geral que lhes diz que precisam de cuidados especiais porque são eles que sofrem, eles que habitam os domínios do demasiado, são eles que chegam da guerra, eles chegam da aventura, eles chegam das confusões do mundo, e ali está a figura da mãe, da avó, da mulher, da parceira, que vai lhe abrir os braços e acariciar. Ele não se move muito, não se destrambelha tanto, não se atira em contorcionismo para alcançar o rosto dela, o pulso dela, o pescoço dela, a sobrancelha dela de forma gratuita. Esses gestos só são produzidos na intimidade do lar, da cama, do sexo. Daí se sobrepõe nesse desejo toda uma outra produção semiótica, comportamental, que a industria pornográfica sabe bem como conduzir. O macho na cama, do pau duro e grande, o comedor, fodedor, o que tem os buracos do seu corpo parcialmente fechados, o que não pode fazer certos gestos na cama, pois isso o faria bicha, brocha ou pior que tudo, mulherzinha.
Ela continua precisando de carinho enquanto pensa tudo isso, mas já se consola sozinha, não vai pedir mais, não vai reclamar mais, não vai colocar a mão dele em sua nuca e torcer os dedos dele para lhe ensinar a acariciar, imaginando que se soltar a mão, ele vai continuar lhe fazendo carinho por mais algum tempo, sem parar. Ela já sabe que não vai ter isso nem do pai, nem do filho, nem do marido, nem do amante, nem do irmão. A máquina de produção de cuidado caiu para lado do gênero dela, ela tem que fazer nos outros os carinhos que gostaria ela própria de receber.
O cuidado, o carinho, a carícia poderiam ser tratados como elemento fundamental da sociedade. Os trabalhos voltados para o cuidado deveriam ser os mais valorizados; mas ao contrário disso o que vemos é um consolo químico, farmacêutico, cada vez mais atrelado ao processo industrial, que se afasta radicalmente do chazinho carinhoso das mãos prontas para acarinhar. O carinho perde para o ansiolítico, o consolo é um comprimido, o cuidado se compra nas salas de massagem. E no casal hétero-normal, é ela que tá lá, bunda estreita na cadeira, lhe dando a carícia.
Saí do restaurante pensando que os homens poderiam aprender a ser mais carinhosos, fazer carinho, acariciar, consolar e cuidar."
Fabiane M. Borges é psicóloga ensaísta e artista, desenvolve pesquisa sobre arte urbana, performance, movimentos sociais, esquizoanálise, saúde mental

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

A banda

Acorda cedo,
o tempo corre.
A vida não espera.
Dia cheio, metrô lotado.
Só quer chegar logo em casa.
E banda não deixa.
Que bom!
Lágrimas escorrem
puras como o nada.
Sem a música
não teria amanhã.
Não pra mim.

OBS: Mais um daqueles poemas bobos (pra muitos, porque são especiais pra mim) que nascem nos melhores momentos. E acredite, esses podem ser às 19h no metrô lotado depois de um dia de aula e trabalho. 

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Frevo por acaso - Cícero

http://www.youtube.com/watch?v=vZU6YYRk_L0

- Como cê tá?
- Cê tá legal?
- Como cê vai?
- Cê vai também?
- Cê tá melhor?
- Cê tá em paz?
- Tá tudo bem?
E o que que a gente faz daquela angústia?
- Hein?
E se um dia precisar
De alguém pra desabar
Eu tô por aí

Infelizmente sol

   Se a vida fosse um filme e tivesse trilha sonora, nessa segunda tocaria a suicida música ''Stop crying your heart out'' do Oasis. Estaria chovendo, as pessoas na rua estariam infelizes e o mundo pararia pra eu me resolver. Mas não tem música alguma tocando além das do meu celular. O sol infelizmente tá brilhando e ninguém sequer olhou pra mim, muito menos me socorreu. A vida não é um filme com trilha sonora ou final feliz, isso é horrível pra quem tanto viu sessão da tarde da Globo.
   To deglutindo toda essa situação até agora, parece que to tentando esconder essa dor, esse sentimento, essa vergonha, essa ferida num lugar bem profundo. Ainda não consegui chorar, me despedaçar, tornar tudo água. Isso só dificulta as coisas, quero sentir algo palpável, quero sofrer tudo pra ver se essa angústia que me sufoca vai embora.
   Eu odeio admitir, mas tá doendo ter que acabar isso que tava começando (''será que tava mesmo?'' eu fico repetindo). Não se compara a machucar alguém que em meses se tornou uma das grandes amizades, mas não é fácil.
   Se eu pudesse fazer um pedido simples no dia de hoje eu só pediria o colo dos meus pais e mais nada, mais ninguém. Nos braços deles eu esperaria meu coração se curar, o coração dela me perdoar e nossa relação ser pura como antes.
   A vida é uma droga e eu ganho é uma tarde de trabalho e uma lembrança: ''toma vergonha nessa cara, você tem 19 anos!''

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Dê o nome, já que o texto é pra você

    As dores dos outros parecem tão distantes das nossas... e de fato são. Ninguém tem tempo de sentir além de sua dor, já sentimos demais por nós mesmos. O que se faz é dar colo, palavras de carinho, tentativas de cura. Mas no fim são só meias palavras, meios esforços, meio sentimento. Mas há casos que doem em nós de verdade. Seja pelo drama, pelo acontecimento, pela grandiosidade de nossa vontade de ir além de nós mesmos. 
     Eu estou me doendo e não é por mim mesma. Por mais estranho que isso pareça. Li um texto de uma grande (na verdade enorme) amiga minha e me despedacei por dentro e por fora. Acho que por conhecê-la tanto eu senti um pouquinho da dor dela. Bem pouco, porque não me arrisco a dizer que sei o que é passar pelo que ela passou, eu na verdade nem faço ideia de como é. Mas eu queria era abraçá-la e dizer que tudo vai ficar bem, mas eu sei que não vai, ninguém pode trazer o que ela quer de volta. Quem me dera se eu pudesse...
    Ela vai ler isso uma hora e vai saber que essas palavras foram feitas pra ela e pra aquela que tanto se pareceu com ela. Sinto saudades dos cuidados dela todo dia, da maneira como sempre me entendeu e da nossa cumplicidade que eu nunca tive com mais ninguém. Esses dias devem estar sendo dolorosos pra ela e eu só queria tentar amenizar um pouquinho, mesmo que seja distraindo-a com essas palavras aqui.

Um desses filmes especiais que remexem no interior e modificam-no



''Quão feliz é o destino de um inocente sem culpa. O mundo em esquecimento pelo mundo esquecido. Brilho eterno de uma mente sem lembranças. Cada orador aceito e cada desejo renunciado.''

Alexander Pope

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

E agora, Amarildo?
o Papa voltou,
a noite chegou,
o gigante dormiu,
você sumiu,
onde está, Amarildo?
onde está, você?
Você que é pedreiro
sem paradeiro,
você que faz casas
que ama, pesca?
Onde está, Amarildo?

Está sem documentos
está sem direitos
está sem voz
já não pode trabalhar,
já não pode pescar,
amar já não pode,
a noite passou,
o dia não veio,
você não veio,
o riso não veio,
não veio a verdade,
Cabral não ouviu
a mídia se calou
a PM não viu
cadê, Amarildo?

Cadê Amarildo?
sua força de Boi,
seu tijolo de bronze,
seu barraco pequeno,
sua grande família,
seu pouco salário,
sua pele proibida,
seu bom coração,
sua justiça — cadê?

Com a vara na mão
quer abrir o mar,
mas não existe mar;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Rocinha,
Rocinha não há mais.
Amarildo, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você cantasse
o samba portelense,
se você corresse,
se você fugisse,
se você morresse...
Mas você não morre
você vive, Amarildo!

Unidos no escuro
qual bichos-do-mato,
sem democracia,
sem justiça, de fato,
para se confiar,
sem polícia montada
que fuja a galope,
nós marchamos, Amarildo!
Amarildo, para onde?


- AMARILDO - Poema de Diego Ruas, baseado no poema "José" de Carlos Drummond de Andrade.
''O trabalho infantil é tido como algo normal na região. Fiscalizar a prática não é tarefa fácil e há até quem hostilize os auditores. É fácil ouvir os adultos defenderem, mesmo dentro dos matadouros, que criança tem de trabalhar “para não virar vagabundo”, “para não se envolver com droga” e “para aprender uma profissão”, só para citar alguns dos argumentos repetidos a esmo.
(...)
Nos abatedouros, a banalização da morte é marcada por episódios de crueldade e o trabalho envolve ações violentas. Entre as atividades que os garotos cumprem estão arrancar toda a pele do animal recém-morto puxando aos poucos e separando o couro com breves golpes e cortar a cabeça e as patas. A noção do que é vida e morte se dilui na mesma medida que o sangue se espalha pelas mãos, pés e pernas desnudas de moleques magrelos. A auditora fiscal Marinalva Dantas conta que em uma das ações flagrou crianças “brincando” de espetar um boi ainda vivo com lâminas.''

http://reporterbrasil.org.br/trabalhoinfantil/violencia-crua-um-flagrante-de-trabalho-infantil-em-matadouro/

E AÍ VOCÊ CONCLUI: DEFINITIVAMENTE O JORNALISMO VALE A PENA. 
AMÉM.

Versos caseiros

Dá saudade dos dias comuns,
das noites barulhentas,
da presença, mesmo que muda.

Saudade da casa tão viva,
dos risos infantis,
do amor disfarçado de briga.

O coração dói em gesto imaturo,
a alma clama quieta,
mas é a saudade que me abraça.
Mais uma vez.


TOTALMENTE INSPIRADO NO TEXTO DO MEU PREFERIDO:


                                                         Casa arrumada

Casa arrumada é assim: Um lugar organizado, limpo, com espaço livre pra circulação e uma boa entrada de luz.
Mas casa, pra mim, tem que ser casa e não centro cirúrgico, um cenário de novela. Tem gente que gasta muito tempo limpando, esterilizando, ajeitando os móveis, afofando as almofadas... Não, eu prefiro viver numa casa onde eu bato o olho e percebo logo: Aqui tem vida... 
Casa com vida, pra mim, é aquela em que os livros saem das prateleiras e os enfeites brincam de trocar de lugar. Casa com vida tem fogão gasto pelo uso, pelo abuso das refeições fartas, que chamam todo mundo pra mesa da cozinha. Sofá sem mancha? Tapete sem fio puxado? Mesa sem marca de copo? Tá na cara que é casa sem festa. E se o piso não tem arranhão, é porque ali ninguém dança.
Casa com vida, pra mim, tem banheiro com vapor perfumado no meio da tarde. Tem gaveta de entulho, daquelas que a gente guarda barbante, passaporte e vela de aniversário, tudo junto...
Casa com vida é aquela em que a gente entra e se sente bem-vinda. A que está sempre pronta pros amigos, filhos... Netos, pros vizinhos... E nos quartos, se possível, tem lençóis revirados por gente que brinca ou namora a qualquer hora do dia.
Arrume a casa todos os dias... Mas arrume de um jeito que lhe sobre tempo para viver nela... E reconhecer nela o seu lugar.



Carlos Drummond de Andrade